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25 maio 2011

SEM DOMICILIO nem RESIDENCIA CONHECIDA

«  Há um direito que só muitos poucos intelectuais cuidam de reivindicar: o direito à errância, à vagabundagem. No entanto, a vagabundagem é a emancipação, é a vida ao longo das estradas, a liberdade.

Romper corajosamente, um dia, com todos os entraves que a vida moderna e a fraqueza do nosso coração, a pretexto de liberdade, fizeram pesar sobre os nossos movimentos, pegar no bordão e no alforge simbólicos e partir!

Para quem conhece o valor  e também o delicioso sabor da liberdade solitária (porque apenas sós somos livres), não há acto mais corajoso nem mais belo do que o da partida.
Felicidade egoísta, talvez.  Mas felicidade, seja como for, para quem a souber saborear.

Estar só, ser pobre sem necessidade, ser-se ignorado, estrangeiro, estar em toda a parte, e, solitário e grande caminhar à conquista do mundo.
O sólido caminheiro, sentado à beira da estrada, e que contempla o horizonte livre que se abre à sua frente, não será senhor absoluto das terras, das águas e até dos céus?

Que castelo poderá rivalizar com ele em poderio e opulência?
O seu feudo não tem limites. O seu império não tem leis.
Nenhuma servidão lhe avilta o porte, nenhum labor lhe inclina a cerviz para a terra que possui e se lhe entrega, inteira, cheia de bondade e beleza.

O pária na nossa sociedade moderna, é o nómada, o vagabundo, «sem domicilio nem residência conhecidos».
Ter um domicílio, uma família, uma propriedade ou uma função pública, meios de existência definidos, eis outras tantas coisas que parecem necessárias, indispensáveis quase, à imensa maioria dos homens, incluindo mesmo os intelectuais que se crêem mais emancipados.

Todavia, todas essas coisas, são apenas formas variadas da escravidão a que nos obriga o contacto com os nossos semelhantes. Sobretudo um contacto contínuo e bem regrado.

Sempre ouvi com admiração mas sem inveja as histórias de pessoas honestas que vivem 20 ou 30 anos no mesmo bairro e, até na mesma casa e que nunca deixaram a sua terra natal.

Não se sentir a necessidade torturante de saber e ver o que há para lá da misteriosa muralha azul do horizonte...
Ver a estrada que parte muito branca, para distâncias desconhecidas, sem se sofrer a necessidade imperiosa de partir com ela....sim toda essa pávida necessidade de imobilidade se assemelha à resignação inconsciente do animal que a servidão embruteceu e estende o pescoço para aceitar os arreios.

Toda a propriedade tem as suas extremas. Todo o poder as suas leis.
O caminheiro possui toda a grande terra cujos limites são o horizonte irreal. O seu império é invulnerável porque ele governa e goza em espírito.»


Isabelle Eberhardt 1877-1904
"Escritos no Deserto"

Amadrugar em Jazz

Quero amadrugar
com as primeiras sombras!

Nas janelas de luz amarelada
e abrir os olhos
dentro da bolha dos vidros
num bafo de sonos
adormecidos.....

Quero a luz
a reflectir como agora!
Cravada na lua como garras de roseira.

Quero amadrugar
nos relevos
das paredes
ensombradas
e na porta da casa
que chia
em cada entreabrir.

Amadrugar com bons dias!
desconhecidos
e alguma melodia de Coltrane
a entorpecer
a  avenida.